quinta-feira, 16 de julho de 2020

Conto "Penumbra"

Olá!

Informações do Conto:
Título: Penumbra
Autor: Rui Martins
Número de palavras: 530 palavras.

Créditos: Fábrica de Histórias


Amanhece lá fora. O sol desperta sem medos. Irradia de luz e energia tudo ao seu redor. Cá dentro a penumbra. Não quero que amanheça. É só mais um dia. Um dia igual a todos os outros dias. Quando menos esperar chegará o medo. Esse medo que me enrola numa teia de aranha, que me deixa confuso, que me transforma. Sou apenas um corpo que perambula no vazio. Não quero que amanheça, pois não consigo sair à rua. E nem quero que me vejam dentro deste lugar, dentro desta cama. As marcas vincadas no corpo não me assustam, mas as razões delas podem se ouvir nas paredes brancas deste quarto. Essas vozes martelam-me a mente como uma chuva de raios que surge num inverno sombrio e frio. O medo é a minha sombra. Transformou-se na minha sombra porque já não sei o que é viver, por isso, não tenho medo. Degrau a degrau, essa sombra vai-me empurrando para o topo de uma escadaria que me levará ao inferno. Quanto mais subo, menos eu sou. Menos eu estou. Esse medo vai se fundindo em mim como brasa, e ela queima, queima como o inferno que devo ir parar em breve. Talvez mais cedo do que julgo. Ninguém me ouve falar, ninguém me ouve rosnar, há meses que não dou uma única palavra a estes homens e mulheres vestidos de branco. Parecem preocupados, mas eu não estou. Eu estou sereno, sabendo que o medo vem alcançando-me lentamente e levando-me para o purgatório devagarinho até chegar ao inferno sã e salvo. Este medo vem sobrevivendo à custa do meu silêncio. Sou cúmplice do medo. Sou cúmplice do silêncio. Cúmplice porque viro o rosto, fecho os olhos, não penso, não falo, não revelo sentimentos, estou calmo e sereno, ou pareço calmo e sereno. Às vezes, o medo não aparece. Costuma ser um visitante, mas não vem todos os dias. Com certeza tem mais coisas para fazer do que vir ver um velho caquético.
– Como está o senhor António? – Ouço do outro lado. Não respondo. Nunca respondo. Nunca respondi. Não nestes últimos meses.
– Está na mesma. O cancro está a levá-lo lentamente. Não temos muito mais o que fazer. Temos dado mais doses de morfina e tem-se aguentado.
Tossi. Era o único barulho que fazia nestes últimos meses.
Algumas vezes fantasio. Fantasio que o medo não está cá e que do outro lado há um mundo bonito. Mas na terra não fui um bom homem. Não fui um bom pai. Mandei para fora de casa a minha filha que me apareceu aos treze anos grávida. Ela teve que ir para casa de uma vizinha e depois decidiu ir para casa de uma irmã da minha mulher. Acabei por ficar viúvo há dez anos e hoje tenho isto... Este cancro a correr-me por dentro.
Escurece lá fora... A penumbra chega até mim. Hoje... neste momento, eu quero que amanheça. Hoje olhei para o medo. Sorri.
– Estamos a perdê-lo. – Ouvi um homem falar.
Não quero ser mais um estorvo, não quero ficar aqui perdido no meio da estrada. Já vejo o fim dela ao longe. Caminho a passos curtos, mas rápidos. Cheguei ao destino.
Estou na penumbra.


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